Revista Fundição Nº7 ja disponível! EDITORIAL
Águas passadas, não movem moinhos;
Águas passadas, não moem moinhos
Dois provérbios, ou duas versões do mesmo, que têm suscitado inúmeras dúvidas aos paremiólogos e etnólogos, ao longo do tempo. Tempo indefinido, que em matéria de ditos do povo não se lhes conhece a origem. Metáforas surgidas num dado momento que ficam na memória, transmitindo-se de geração em geração. Um “saber de experiências feito”, exemplo para os vindouros. E o que é a vida, senão contínua aprendizagem?
Estamos em 2018, comemora-se o Ano Europeu do Património Cultural, e o Barreiro teria tanto a celebrar se não tivesse deixado ruir grande parte do seu património! Numa era de transformação de valores e costumes, de modernização, de crescimento do mercado turístico, de credenciação de museus, é inadmissível que tanto património de arqueologia industrial seja votado ao esquecimento! E isso está a acontecer nesta cidade que vê esboroar a sua importância na indústria química, ferroviária e moageira. Destrói-se um passado histórico em poucos anos, ou pelas intempéries ou pela mão do homem. Assiste-se ao pouco ou inexistente interesse em preservá-lo, mostrar aos mais novos a História viva, fazê-los imaginar a relevância do Barreiro na época da Expansão, ou na economia do país no início do século XX. Para tal, ao invés do abandono ou da destruição de imóveis de grande interesse público, em termos de arqueologia industrial, como os edifícios da zona fabril da CUF, a estação ferroviária do Barreiro-mar ou os moinhos de maré, seria premente a reconstrução destes espaços, de forma a manter viva a memória de um Barreiro que já foi o coração da economia nacional. Pelo menos, espaços de cariz religioso, com relevante carga histórica e artística, ainda vão tendo restauros, Deo Gratias!, como o magnífico pórtico manuelino da igreja de Palhais.
No início do século XX, as máquinas vêm substituir a moagem artesanal, os moinhos de vento e de maré vêem os seus dias contados. Alguns são destruídos, por questões de reestrutução urbanística, como os do Lavradio (na “praia dos moinhos”) ou o moinho de maré da Verderena. Em Alburrica, vão silenciando as mós. Os três moinhos de vento são atracção turística, o encanto de quem cruza o rio e, por isso, regenerados, de quando em vez. Os de maré não têm a mesma sorte, ficam esquecidos no lodo da vazante. Que injustiça, para tão fausto papel no passado!
Há referências a moinhos de maré por altura da fundação da nacionalidade, atingindo a maior existência na época dos Descobrimentos, com a concentração da população em Lisboa e zonas ribeirinhas do Tejo. Nos esteiros do rio Coina, constroem-se embarcações para as Viagens e aprovisionam-se de biscoito, feito com os cereais triturados nos moinhos de maré construídos numa extensão compreendida entre Coina e Alburrica. Do Barreiro partem, assim, as naus e caravelas para desbravar “mares nunca dantes navegados”, unir a Europa ao Novo Mundo. O mesmo Barreiro que viu, neste ano de 2018, morrer um dos ícones do seu património industrial, histórico e etnográfico: o moinho de maré Pequeno, em Alburrica, zona classificada como Sítio de Interesse Municipal. É certo que se encontrava num estado de degradação muito avançado, mas as suas janelas ainda olhavam o Tejo, numa ínfima esperança de ver chegar quem o salvasse. A 13 de junho, chegou a Máquina e arrasou o que restava das paredes e cantaria. Ficaram os arcos, submersos. Afinal, águas passadas moem moinhos!
“Temos obrigação de salvar tudo aquilo que ainda é susceptível de ser salvo, para que os nossos netos, embora vivendo num Portugal diferente do nosso, se conservem tão Portugueses como nós e capazes de manter as suas raízes culturais mergulhadas na herança social que o passado nos legou.” António Jorge Dias (1907- 1973), etnólogo.